Capítulo 1 — O desejo de Inácio pelo martírio
Quando Trajano, não há muito tempo, sucedeu ao império dos romanos, Inácio, discípulo do apóstolo João, homem em todos os aspectos de caráter apostólico, governava a Igreja dos antioquenos com grande zelo, tendo escapado com dificuldade das anteriores tempestades das muitas perseguições sob Domiciano, visto que, como um bom piloto, pelo leme da oração e do jejum, pelo ardor de sua pregação e por seu constante labor espiritual, resistira ao dilúvio que se lançava contra ele, temendo apenas perder algum daqueles que eram fracos de coragem ou ingênuos em sua simplicidade. Por isso, alegrou-se com o estado tranquilo da Igreja, quando cessou por um breve tempo a perseguição; mas se entristecia em relação a si mesmo, porque ainda não havia alcançado o perfeito amor a Cristo, nem atingido a plena condição de discípulo. Pois refletia intimamente que a confissão feita pelo martírio o aproximaria ainda mais do Senhor. Assim, permanecendo ainda alguns anos com a Igreja e, como uma lâmpada divina, iluminando a mente de todos com suas exposições das Sagradas Escrituras, alcançou enfim o objeto de seu desejo.
Capítulo 2 — Inácio é condenado por Trajano
Pois Trajano, no nono ano de seu reinado, envaidecido após a vitória sobre citas, dácios e muitas outras nações, e pensando que ainda faltava subjugar a religião dos cristãos para completar a sujeição de todas as coisas a si, ameaçou persegui-los caso não adorassem os demônios, como faziam as demais nações. Assim, obrigou todos os que viviam piedosamente a sacrificar ou morrer. Então, o nobre soldado de Cristo, Inácio, temendo pela Igreja dos antioquenos, foi, conforme seu desejo, conduzido diante de Trajano, que se encontrava em Antioquia, mas apressava-se para partir contra armênios e partos. E quando foi apresentado ao imperador, este lhe disse:
“Quem és tu, vil criatura, que ousas transgredir nossos mandamentos e persuadir outros a fazer o mesmo, levando-os à perdição?”
Inácio respondeu:
“Ninguém deve chamar de vil o portador de Deus; pois todos os espíritos malignos já se afastaram dos servos de Deus. Mas, se me chamas de vil por eu ser inimigo desses espíritos, concordo contigo; porque, tendo Cristo, o Rei do céu, em meu coração, destruo todos os ardis desses espíritos.”
Trajano replicou:
“E quem é esse portador de Deus?”
Inácio respondeu:
“Aquele que tem Cristo em seu peito.”
Trajano disse:
“Não te parece que nós temos os deuses em nossa mente, cujo auxílio recebemos em nossas vitórias contra os inimigos?”
Inácio respondeu:
“Estás em erro quando chamas deuses aos demônios das nações. Pois há um só Deus, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há; e um só Jesus Cristo, o Filho unigênito de Deus, cujo reino desejo herdar.”
Trajano disse:
“Referes-te àquele que foi crucificado sob Pôncio Pilatos?”
Inácio respondeu:
“Refiro-me Àquele que crucificou o meu pecado e aquele que o inventou, e que pôs todo o engano e malícia do diabo debaixo dos pés dos que o trazem no coração.”
Trajano disse:
“Tu, então, carregas dentro de ti aquele que foi crucificado?”
Inácio respondeu:
“Certamente, pois está escrito: Habitarei neles e andarei entre eles.”
Então Trajano pronunciou a sentença:
“Ordenamos que Inácio, que afirma carregar dentro de si o Crucificado, seja acorrentado por soldados e levado à grande cidade de Roma, para ser devorado pelas feras, em espetáculo ao povo.”
O santo mártir, ao ouvir tal sentença, exclamou com alegria:
“Agradeço-te, Senhor, porque me concedeste ser honrado com perfeito amor a Ti, e me fizeste ser acorrentado com ferros, como o Teu Apóstolo Paulo.”
E dizendo isto, abraçou as cadeias com alegria; e, depois de orar pela Igreja e entregá-la ao Senhor com lágrimas, foi arrastado com dureza pelos soldados, como um distinto carneiro, líder de um rebanho, para ser levado a Roma, onde serviria de alimento às bestas sedentas de sangue.
Capítulo 3 — Inácio embarca para Esmirna
Cheio, portanto, de ânimo e alegria em seu desejo de sofrer, partiu de Antioquia para Selêucia, de onde embarcou. Após muitas fadigas, chegou a Esmirna, onde desembarcou com grande júbilo e apressou-se a ver o santo Policarpo, seu condiscípulo de outrora e então bispo da cidade. Pois ambos tinham sido discípulos do apóstolo João. Ali, comunicando-lhe dons espirituais e gloriando-se em suas cadeias, pediu-lhe que se esforçasse com ele para o cumprimento de seu desejo. E, de fato, suplicou a toda a Igreja, pois as cidades e Igrejas da Ásia recebiam o santo homem por meio de seus bispos, presbíteros e diáconos, todos correndo para encontrá-lo, desejosos de receber dele alguma graça espiritual; mas, acima de tudo, ao santo Policarpo, rogava que, pelas feras, pudesse logo deixar este mundo e comparecer diante de Cristo.
Capítulo 4 — Inácio escreve às igrejas
Assim falava e testemunhava, estendendo seu amor a Cristo até o ponto de alguém que estava prestes a conquistar o céu por meio de sua boa confissão. E, para corresponder às Igrejas que vinham ao seu encontro por seus dirigentes, enviava cartas de ação de graças, que destilavam graça espiritual, acompanhadas de oração e exortação. Mas, temendo que o amor dos irmãos pudesse enfraquecer seu zelo pelo Senhor, visto que se lhe abria uma porta para o martírio, escreveu à Igreja de Roma a epístola que segue anexa.
Capítulo 5 — Inácio é levado a Roma
Havendo, portanto, por meio dessa epístola, fortalecido os irmãos de Roma que se mostravam contrários ao seu martírio, partiu de Esmirna (pois os soldados o apressavam, desejosos de chegar logo aos espetáculos públicos na grande cidade, a fim de entregá-lo às feras diante do povo romano). Desembarcou então em Trôade; dali passou a Neápolis, seguiu a pé por Filipos e pela Macedônia, até a região de Épiro próxima a Epidâmno; e encontrando um navio em um dos portos, atravessou o Adriático, entrou no Tirreno, passando por diversas ilhas e cidades, até que, avistando Pouzzoles, desejou desembarcar para pisar as pegadas do apóstolo Paulo. Mas um vento violento não permitiu, e o navio, impelido rapidamente, passou adiante. Apenas pôde expressar sua alegria pelo amor dos irmãos naquele lugar. Seguindo com ventos favoráveis, fomos forçados a chegar em um dia e uma noite, lamentando a iminente partida desse justo, enquanto ele se alegrava, apressado em deixar o mundo para alcançar o Senhor a quem amava. Ao entrar no porto de Roma, já ao fim dos jogos, os soldados se impacientaram com nossa demora, mas o bispo, cheio de gozo, cedeu à pressa deles.
Capítulo 6 — Inácio é devorado pelas feras em Roma
Chegando, então, ao local chamado Porto, e sendo a fama do santo mártir já divulgada, fomos ao encontro dos irmãos, cheios de alegria e temor: alegria por serem dignos de encontrar Teóforo; temor por vê-lo conduzido à morte. Alguns, movidos por zelo, falavam em aplacar o povo para impedir sua condenação. Mas ele, conhecendo isso pelo Espírito, pediu silêncio, exortou-os a amá-lo verdadeiramente, e insistiu que não o impedissem de ir ao encontro do Senhor. Depois, com todos os irmãos ajoelhados, orou ao Filho de Deus pela Igreja, pedindo o fim da perseguição e a permanência da caridade entre os fiéis. Foi então conduzido apressadamente ao anfiteatro e, sendo lançado às feras conforme o decreto de César, no último dia dos espetáculos (o décimo terceiro, quando o povo se reunia em grande número), ali consumou seu desejo. Cumpriu-se assim a Escritura: “O desejo do justo é agradável ao Senhor”. Restaram apenas as partes mais duras de seus ossos, recolhidas e levadas para Antioquia, como tesouro inestimável legado à Igreja pela graça do mártir.
Capítulo 7 — Inácio aparece em visão após sua morte
Essas coisas ocorreram no décimo terceiro dia antes das Calendas de janeiro, isto é, em vinte de dezembro, sendo Sura e Senécio cônsules pela segunda vez. Nós, que fomos testemunhas oculares, passamos a noite em lágrimas e orações, suplicando ao Senhor que nos desse plena certeza do que acontecera. E sucedeu que, adormecendo por breve instante, alguns viram o bem-aventurado Inácio junto a si, abraçando-os; outros o viram orando por nós; e outros, ainda, como que suado, vindo de sua luta, em pé diante do Senhor. Com grande alegria, narramos uns aos outros nossas visões, e louvamos a Deus, doador de todos os bens, reconhecendo a bem-aventurança do santo mártir. E divulgamos o dia e a hora de sua paixão, para que, reunindo-nos anualmente, possamos ter comunhão com o campeão e mártir de Cristo, que venceu o diabo e consumou o curso desejado por amor de Cristo Jesus nosso Senhor; a quem, com o Pai e o Espírito Santo, sejam a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.