Saudação
Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja de Deus que está em Filipos, que alcançou misericórdia na fé, na paciência e no amor não fingido: graça e paz da parte de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo, “que é o Salvador de todos os homens, especialmente dos que creem” (1Tm 4,10).
Capítulo 1 — Motivo da escrita da epístola
Tendo em mente o vosso amor e zelo em Cristo, que manifestastes para conosco, julgamos conveniente escrever-vos, a vós que demonstrastes tão piedoso e espiritual amor para com os irmãos, para vos recordar do vosso caminho cristão: “que todos faleis a mesma coisa, sendo unidos no mesmo pensamento, tendo o mesmo sentir e andando pela mesma regra de fé” (1Cor 1,10), como Paulo vos exortou. Pois, se há um só Deus do universo, o Pai de Cristo, “de quem são todas as coisas” (1Cor 8,6); e um só Senhor Jesus Cristo, nosso Senhor, “por quem são todas as coisas” (1Cor 8,6); e também um só Espírito Santo, que operou em Moisés, nos profetas e nos apóstolos; e ainda um só batismo, pelo qual temos comunhão com a morte do Senhor; e uma só Igreja eleita — convém, portanto, que haja igualmente uma só fé em Cristo. Pois “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por todos e em todos” (Ef 4,5-6).
Capítulo 2 — Unidade das três Pessoas divinas
Há, portanto, um só Deus e Pai, e não dois ou três; um só que é, e não há outro além d’Ele, o único Deus verdadeiro. Pois a Escritura diz: “O Senhor teu Deus é um só Senhor” (Dt 6,4). E ainda: “Não temos todos um só Pai? Não foi um só Deus que nos criou?” (Ml 2,10). Há também um só Filho, o Verbo de Deus. Pois a Escritura diz: “O Filho unigênito, que está no seio do Pai” (Jo 1,18). E novamente: “Um só Senhor Jesus Cristo” (1Cor 8,6). E ainda: “Qual é o seu nome, e qual é o nome de seu Filho, para que o conheçamos?” (Pr 30,4). Há também um só Paráclito. Pois a Escritura diz: “Há um só Espírito” (Ef 4,4), já que “fomos chamados em uma só esperança da nossa vocação” (Ef 4,4). E ainda: “Todos nós bebemos de um só Espírito” (1Cor 12,13). É evidente que todos estes dons “opera um só e mesmo Espírito” (1Cor 12,11). Portanto, não há três Pais, nem três Filhos, nem três Paráclitos, mas um só Pai, um só Filho e um só Paráclito. Por isso também o Senhor, quando enviou os apóstolos a fazer discípulos de todas as nações, ordenou-lhes: “Batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19), não em um só [ser] com três nomes, nem em três [seres] que se encarnaram, mas em três de igual honra.
Capítulo 3 — Cristo nasceu e morreu verdadeiramente
Pois só o Filho se encarnou, nem o Pai, nem o Paráclito; e não em aparência ou imaginação, mas em realidade. Pois “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Pois “a Sabedoria construiu para si uma casa” (Pr 9,1). E o Verbo de Deus nasceu como homem, em corpo, da Virgem, sem intervenção de homem. Pois está escrito: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho” (Is 7,14). Ele foi, portanto, verdadeiramente nascido, verdadeiramente cresceu, verdadeiramente comeu e bebeu, foi verdadeiramente crucificado, morreu e ressuscitou. Bem-aventurado aquele que crê nessas coisas como realmente aconteceram; maldito, porém, aquele que não crê, tanto quanto os que crucificaram o Senhor. Pois o príncipe deste mundo se alegra quando alguém nega a cruz, sabendo que a confissão da cruz é a sua própria condenação. Esse é o troféu erguido contra o seu poder: quando a vê, ele estremece; quando dela ouve, fica apavorado.
Capítulo 4 — A malignidade e a loucura de Satanás
E, de fato, antes que a cruz fosse erguida, ele (Satanás) ansiava que assim fosse; e “operava nos filhos da desobediência” (Ef 2,2). Ele agiu em Judas, nos fariseus, nos saduceus, nos velhos, nos jovens e nos sacerdotes. Mas, quando a cruz estava prestes a ser erguida, ficou perturbado, infundiu arrependimento no traidor, mostrou-lhe a corda para se enforcar e ensinou-lhe a morrer por estrangulamento. Também atemorizou a mulher fraca, perturbando-a com sonhos; e ele, que havia tentado de todas as formas preparar a cruz, procurou então impedir que fosse erguida. Não porque tivesse arrependimento da gravidade de seu crime (pois, nesse caso, não seria totalmente perverso), mas porque percebeu que sua própria destruição estava próxima. Pois a cruz de Cristo foi o início de sua condenação, o começo de sua morte, o princípio de sua ruína. Por isso também ele age em alguns para que neguem a cruz, tenham vergonha da paixão, chamem a morte de aparência, deturpem e neguem o nascimento da Virgem, e caluniem a própria natureza humana como se fosse abominável. Ele luta ao lado dos judeus na negação da cruz, e ao lado dos gentios na calúnia contra Maria, que são hereges ao sustentar que Cristo tinha apenas um corpo fantasmagórico. Pois o príncipe de toda maldade assume formas diversas, enganador dos homens como é, incoerente, até mesmo se contradizendo, projetando um caminho e logo seguindo outro. Pois é sábio para o mal, mas do bem nada entende. Está cheio de ignorância por causa de sua recusa voluntária à razão; pois, como poderia ser considerado de outro modo aquele que não percebe a razão quando ela está a seus pés?
Capítulo 5 — Apóstrofe a Satanás
Pois se o Senhor fosse apenas um homem, possuidor de alma e corpo, por que mutilas e deturpas o Seu nascimento com a natureza comum da humanidade? Por que chamas a paixão de mera aparência, como se fosse algo estranho que acontecesse a um simples homem? E por que consideras a morte de um mortal como apenas uma morte imaginária? Mas se, ao contrário, Ele é tanto Deus quanto homem, por que chamas ilícito chamá-Lo de “Senhor da glória” (1Cor 2,8), Ele que por natureza é imutável? Por que dizes que é ilícito afirmar daquele Legislador que possui alma humana: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14), e foi um homem perfeito, e não apenas alguém habitando em um homem? Mas como poderia esse suposto “mágico” ter existido, Ele que outrora formou toda a natureza, seja sensível ou inteligível, segundo a vontade do Pai, e que, ao encarnar-se, curou toda espécie de doença e enfermidade?
Capítulo 6 — Continuação
E como Ele poderia não ser Deus, Aquele que ressuscita os mortos, faz os coxos andarem, purifica os leprosos, devolve a vista aos cegos, e tanto multiplica como transforma substâncias existentes — como os cinco pães e os dois peixes, ou a água que se tornou vinho — e que põe em fuga todo o teu exército apenas com uma palavra? E por que abusas da natureza da Virgem, chamando desonrosos os seus membros, tu que outrora os exibias em procissões públicas e ordenavas que fossem mostrados nus — homens diante das mulheres e mulheres incitando a lascívia desenfreada dos homens? Mas agora tu chamas essas coisas de vergonhosas e finges estar cheio de modéstia, ó espírito de fornicação, sem saber que algo só se torna vergonhoso quando é poluído pelo pecado. Quando o pecado não está presente, nenhuma das coisas criadas é vergonhosa, nenhuma é má, mas todas são muito boas. Porém, como és cego, injurias essas coisas.
Capítulo 7 — Continuação: a incoerência de Satanás
E como, novamente, Cristo não te parece de modo algum nascido da Virgem, mas apenas Deus sobre todos e o Todo-Poderoso? Diz, então: quem O enviou? Quem era Senhor sobre Ele? E de quem cumpriu a vontade? E que leis cumpriu, se não estava sujeito à vontade nem ao poder de ninguém? E, enquanto negas que Cristo nasceu, afirmas que o Incriado foi gerado e que Aquele que não tinha princípio foi pregado na cruz — por permissão de quem, não sei dizer. Mas as tuas táticas mutáveis não me enganam, nem ignoro que costumas andar com passos tortuosos e incertos. E tu não sabes quem realmente nasceu, tu que finges saber tudo.
Capítulo 8 — Continuação: a ignorância de Satanás
Muitas coisas te são desconhecidas: a virgindade de Maria; o nascimento maravilhoso; Quem foi Aquele que se encarnou; a estrela que guiou os que estavam no Oriente; os Magos que trouxeram presentes; a saudação do arcanjo à Virgem; a concepção prodigiosa da que estava desposada; o anúncio do menino-precursor a respeito do Filho da Virgem, e seu salto no ventre por causa do que previa; os cânticos dos anjos sobre Aquele que nasceu; a boa nova anunciada aos pastores; o temor de Herodes de perder o reino; a ordem de matar os inocentes; a fuga para o Egito e o retorno à mesma região; as faixas de menino; o recenseamento humano; o ser alimentado com leite; o nome de pai dado a quem não gerou; a manjedoura porque não havia lugar [em outro lugar]; a ausência de preparo humano [para o Menino]; o crescimento gradual, a fala humana, a fome, a sede, as viagens, o cansaço; a oferta de sacrifícios e depois também a circuncisão, o batismo; a voz de Deus sobre Ele no batismo, declarando quem Ele era e de onde viera; o testemunho do Espírito e do Pai do alto; a voz de João, o profeta, quando designou a paixão com o título de “Cordeiro”; a realização de vários milagres, diversas curas; a repreensão do Senhor ao mar e aos ventos; espíritos malignos expulsos; tu mesmo torturado e, quando afligido pelo poder d’Aquele que Se manifestou, incapaz de fazer coisa alguma.
Capítulo 9 — Continuação: a ignorância de Satanás
Ao ver essas coisas, ficaste em completa perplexidade. E não sabias que era de uma virgem que nasceria; mas o cântico de louvor dos anjos te espantou, assim como a adoração dos Magos e a aparição da estrela. Voltaste então ao teu estado de ignorância voluntária, porque todas essas circunstâncias te pareciam triviais; pois consideraste desprezíveis as faixas, a circuncisão e o ser alimentado com leite: essas coisas te pareceram indignas de Deus. Novamente, contemplaste um homem que permaneceu quarenta dias e noites sem provar alimento humano, acompanhado de anjos ministradores, diante dos quais tremeste, quando O viste primeiro batizado como um homem comum, sem entender a razão disso. Mas após Seu longo jejum reassumiste tua audácia habitual e O tentaste em Sua fome, como se fosse um homem ordinário, sem saber quem Ele era. Pois disseste: “Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4,3). Ora, essa expressão — “Se és Filho” — revela ignorância. Pois, se tivesses verdadeiro conhecimento, terias entendido que o Criador pode com igual facilidade criar o que não existe e mudar o que já existe. E tentaste, pela fome, Aquele que alimenta todos os seres que necessitam de comida. Tentaste o próprio “Senhor da glória” (1Cor 2,8), esquecendo-te, em tua malícia, que “o homem não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3; Mt 4,4). Pois se soubesses que Ele era o Filho de Deus, terias entendido também que Aquele que preservou Seu corpo sem sentir necessidade alguma por quarenta dias e quarenta noites poderia ter feito o mesmo para sempre. Por que, então, padeceu fome? Para demonstrar que havia assumido um corpo sujeito aos mesmos sentimentos dos homens comuns. Pelo primeiro fato mostrou que era Deus; pelo segundo, que era também homem.
Capítulo 10 — Continuação: a audácia de Satanás
Atreveste-te, então — tu que caíste “como um relâmpago” (Lc 10,18) da mais alta glória — a dizer ao Senhor: “Lança-te daqui para baixo” (Mt 4,6), a Ele para quem “as coisas que não são são como se já fossem” (cf. Rm 4,17), e provocaste a exibição de vanglória n’Aquele que estava livre de toda ostentação? E ousaste ainda citar as Escrituras a respeito d’Ele: “Aos Seus anjos dará ordens a teu respeito, e nas mãos te sustentarão, para que não tropeces em alguma pedra” (Sl 91,11-12; Mt 4,6). Ao mesmo tempo fingiste ignorar o restante, ocultando sorrateiramente o que [a Escritura] predisse acerca de ti e de teus servos: “Andarás sobre o áspide e o basilisco; calcarás aos pés o leão e o dragão” (Sl 91,13).
Capítulo 11 — Continuação: a audácia de Satanás
Se, portanto, tu és pisado sob os pés do Senhor, como ousas tentar Aquele que não pode ser tentado, esquecendo o preceito do Legislador: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Dt 6,16)? Sim, tu até ousas, ó maldito, apropriar-te das obras de Deus para ti mesmo, e declarar que o domínio sobre estas te foi entregue. E apresentas a tua própria queda como exemplo ao Senhor, prometendo dar-Lhe o que na verdade já é d’Ele, se Ele se prostrar e te adorar. E como não tremeste, ó espírito mais perverso que todos os perversos por causa da tua malícia, ao proferir tais palavras contra o Senhor? Pela tua gula foste vencido, e pela tua vanglória foste lançado em desonra; pela avareza e ambição arrastas agora outros para a impiedade. Tu, ó Belial, dragão, apóstata, serpente tortuosa, rebelde contra Deus, proscrito de Cristo, afastado do Espírito Santo, exilado das fileiras dos anjos, injuriador das leis de Deus, inimigo de tudo o que é lícito; tu, que te levantaste contra o primeiro homem formado e expulsaste da obediência ao mandamento de Deus aqueles que em nada te haviam ofendido; tu, que levantaste contra Abel o homicida Caim; tu, que pegaste em armas contra Jó: dizes agora ao Senhor: “Se Tu prostrado me adorares”? Ó que audácia! Ó que loucura! Escravo fugitivo, escravo incorrigível, ousas rebelar-te contra o bom Senhor? Dizes a tão grande Senhor, o Deus de tudo quanto a mente ou os sentidos podem perceber: “Se Tu prostrado me adorares”?
Capítulo 12 — A resposta mansa de Cristo
Mas o Senhor é longânimo e não reduz a nada aquele que em sua ignorância ousa proferir tais palavras; antes, responde mansamente: “Vai-te, Satanás” (Mt 4,10). Ele não disse: “Vai para trás de Mim”, pois não é possível que se convertesse; mas: “Vai-te, Satanás”, para o caminho que escolheste. “Vai-te” para aquelas coisas às quais, por tua malícia, foste destinado. Pois Eu sei quem sou, e por Quem fui enviado, e a Quem Me convém adorar. “O Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele servirás” (Dt 6,13; Mt 4,10). Eu conheço o único Deus; reconheço o único Senhor, de quem te tornaste apóstata. Eu não sou inimigo de Deus; confesso a Sua preeminência; conheço o Pai, autor da Minha geração.
Capítulo 13 — Várias exortações e instruções
Estas coisas, irmãos, pelo afeto que vos tenho, senti-me constrangido a escrever, exortando-vos para a glória de Deus, não como se fosse alguém de importância, mas apenas como irmão. Sede submissos ao bispo, aos presbíteros e aos diáconos. Amai-vos uns aos outros no Senhor, como sendo imagens de Deus. Atentai, vós, maridos, para amar vossas esposas como a vossos próprios membros. Vós, esposas, amai também vossos maridos, como sendo um com eles pela vossa união. Se alguém vive em castidade ou continência, não se ensoberbeça, para que não perca sua recompensa. Não desprezeis as festas. Não desprezeis o período dos quarenta dias, pois ele é uma imitação da conduta do Senhor. Após a semana da Paixão, não deixeis de jejuar às quartas e sextas-feiras, distribuindo ao mesmo tempo da vossa abundância aos pobres. Se alguém jejua no Dia do Senhor ou no Sábado, exceto apenas no Sábado pascal, este é um homicida de Cristo.
Capítulo 14 — Despedidas e advertências
Que vossas orações se estendam à Igreja de Antioquia, de onde também eu, como prisioneiro, estou sendo levado a Roma. Saúdo o santo bispo Policarpo; saúdo o santo bispo Vitalio, e o sagrado presbitério, e os diáconos, meus companheiros de serviço; em lugar dos quais esteja a minha alma. Mais uma vez me despeço do bispo e dos presbíteros no Senhor. Se alguém celebra a Páscoa junto com os judeus, ou recebe os símbolos de sua festa, este é participante com aqueles que mataram o Senhor e Seus apóstolos.
Capítulo 15 — Saudações. Conclusão
Os diáconos Fílon e Agatópo vos saúdam. Eu saúdo o grupo das virgens e a ordem das viúvas, das quais desejo ter alegria! Eu saúdo o povo do Senhor, desde o menor até o maior. Enviei-vos esta carta por meio de Eufânio, o leitor, homem honrado por Deus e muito fiel, que encontrei em Régio, justamente quando embarcava. Lembrai-vos das minhas cadeias, para que eu seja aperfeiçoado em Cristo. Permanecei bem no corpo, na alma e no espírito, enquanto pensais nas coisas perfeitas, afastando-vos dos obreiros da iniquidade, que corrompem a palavra da verdade, mas sendo fortalecidos interiormente pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo.